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Tema da Semana - Cultura do Estupro

Tema da Semana: 

A cultura do estupro no Brasil contemporâneo — por que esse crime ainda é tão socialmente aceito no país?

Contextualização Legal

Na Antiguidade, o Código de Hamurabi já apresentava penas acerca da prática de estupro, contudo somente protegia as mulheres violentadas por homens que elas não conhecessem previamente. 

Na Idade Média, o Direito Canônico, perante casos de estupro, protegia especificamente a mulher virgem, solteira e honesta, excluindo, dessa forma, as mulheres casadas e as prostitutas.

Somente em 2009, a legislação brasileira — baseada no Direito Romano, oriundo de uma civilização patriarcal — considerou estupros cometidos dentro do casamento, por meio da Lei n° 12.015, abrangendo mais amplamente a definição desse crime: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

Sobre os dados

O Atlas da Violência (2018)

Pela primeira vez, essa pesquisa analisou a violência sexual no Brasil. Ela avaliou dados da Segurança Pública, que registraram 49.497 casos de estupro em 2016,  e do Sistema Único de Saúde (SUS), que contabilizou 22.918. Todavia, como esses números são relacionados aos casos denunciados e de ciência desses órgãos consultados, o Atlas afirma ter havido entre 300 mil a 500 mil casos de estupro não catalogados devido à subnotificação. Vale salientar que a minoria dessas denúncias resultou em penalização dos culpados pelo crime.


Contextualização histórica

Grécia: sua organização social e sua mitologia 

Aristóteles, filósofo grego, no livro “A Política”, desenvolveu a sua concepção sobre a posição da mulher no contexto familiar. Segundo ele, o marido está para a sua esposa como o governante está para o cidadão livre, colocando a mulher em uma posição de dependência natural ao seu marido. Ademais, ele corrobora a ideia de que o papel da mulher compreende somente os deveres de esposa e de mãe, assim, realizando as tarefas domésticas e cuidando dos filhos.

Na mitologia grega, a górgona Medusa, antes de tornar-se um monstro com cabelos de serpente, corpo réptil e olhos capazes de transformar em pedra quem os mirasse, era uma virgem sacerdotisa de Palas Atena que foi estuprada por Poseidon no templo dessa deusa. Em vez de repreender o deus dos mares, Atena puniu a vítima da violência sexual, transformando-a em uma criatura mortal, que, desde então, não foi tocada novamente, exceto por Perseu, que lhe cortou a cabeça.


Brasil Colônia

Desde a chegada dos portugueses ao Brasil em 1500 e o começo das expedições no território recém-descoberto pelos europeus, ocorreram os primeiros casos de estupro da história do País, cometidos contra as mulheres nativas da região. Posteriormente, com a chegada dos navios negreiros para o Brasil, as principais vítimas dessa violência foram as mulheres pretas escravas. Dessa forma, vale salientar que o processo de miscigenação do povo brasileiro não ocorreu de maneira tão romantizada, mas ,sim, por meio de violências sexuais que “coisificavam” as mulheres.


Dicas de repertórios artísticos

Músicas

Til It Happens To You – Lady Gaga. 

Essa música, nomeada ao Oscar como melhor canção original, fez parte da trilha sonora do documentário “The Hunting Ground”, que aborda os ataques sexuais em universidades e o esforço de funcionários dessas instituições para encobrir esses crimes. Durante a apresentação emocionante da artista no Oscar, dezenas de vítimas de agressão sexual com frases de apoio escritas no corpo subiram ao palco da cerimônia em forma de protesto e de solidariedade a todas as mulheres.

“Até isso acontecer com você

Você não sabe como me sinto, como me sinto

Até isso acontecer com você

Você não vai saber, não vai ser real”


A Scary Time (For Boys) – Linzy Lab. 

Essa música não só aborda as várias violências simbólicas que legitimam e que estimulam os abusos sexuais contra as mulheres, mas também, de maneira irônica, retrata a conduta dos homens que não entendem seus privilégios em relação à população feminina atribuídos pelo patriarcado. 

“Não posso usar o transporte público depois das 19h

Eu não posso ser brutalmente honesta quando você me chama no meu DM

Eu não posso ir ao clube apenas para dançar com minhas amigas

E eu nunca posso deixar minha bebida sozinha

[...]

Mas com certeza é um tempo assustador para meninos

Sim, cavalheiros se unam, façam barulho

É realmente difícil quando sua reputação está em jogo

E qualquer mulher que você atacou pode aparecer a qualquer momento”


Boys Will Be Boys – Dua Lipa. 

Essa música, lançada neste ano, já ganhou grande repercussão devido à visibilidade da cantora e do seu trabalho. Nessa canção, ela critica, principalmente, a ideia de que homens podem agir de determinada maneira simplesmente por ser assim que homens devem agir, sem haver chance de mudança. Enquanto isso, as meninas devem “amadurecer” mais rápido que o meninos, pois a sociedade as sexualiza mais cedo e as impõe comportamentos de modo que elas não podem viver sua infância plenamente.

“É natural voltar para a casa antes do Sol se pôr

E colocar suas chaves entre os dedos quando há garotos por perto

Não é engraçado como rimos para esconder o nosso medo

Quando não tem nada de engraçado aqui? (Ah)

[…]

Se você está ofendido com essa música

Você claramente está fazendo algo errado

Se você está ofendido com essa música

Então você provavelmente está dizendo

Garotos serão, garotos serão

Garotos serão, garotos serão garotos

Mas as garotas serão mulheres”


Livros

Outros Jeitos de Usar a boca – Rupi kaur. 

"’Outros jeitos de usar a boca' é um livro de poemas sobre a sobrevivência. Sobre a experiência de violência, o abuso, o amor, a perda e a feminilidade. Lida com um tipo diferente de dor. Cura uma mágoa diferente. 'Outros jeitos de usar a boca' transporta o leitor por uma jornada pelos momentos mais amargos da vida e encontra uma maneira de tirar delicadeza deles."


O Edifício Yacubian – Alaa Al Aswany. 

"No início do século XX, o elegante Edifício Yacubian era habitado por ministros de Estado e estrangeiros. Ao longo dos anos, as reviravoltas políticas transformaram o edifício e o centro do Cairo num cenário decadente. Intercalando essas tramas como numa telenovela, Alaa Al Aswany constrói personagens carismáticos que protagonizam os principais dramas da sociedade egípcia contemporânea: da opressão sexual de mulheres e homossexuais à repressão financeira da ditadura; da corrupção política ao recrudescimento do fundamentalismo religioso."


Stolen — Carta ao Meus Sequestrador. 

"Gemma é uma adolescente normal esperando para pegar um voo no aeroporto de Bangkok com seus pais. Ao se afastar, conhece o charmoso e envolvente Ty, e nem imagina quais são suas reais intenções. Ele lhe oferece um café em que coloca algum tipo de droga. Confusa, ela é sequestrada e arrastada para o meio do deserto australiano. Ele a rouba para si, depois de anos a observando, e ainda espera que ela o ame. Os dias se passam e eles têm apenas um ao outro na imensidão vazia e escaldante do deserto, e Gemma começa a entender e conhecer Ty. Os limites entre inimizade e compaixão vão ficando cada vez mais tênues."


Não se mexa – Margaret Mazzantini. 

"Num cruzamento movimentado de Roma, Angela avança o sinal fechado guiando uma vespa. Um carro se choca contra ela e lança a garota contra o asfalto, deixando-a inconsciente. Diante da morte iminente da filha, Timoteo começa a lhe contar, num longo monólogo, sua história secreta. Aos poucos, o narrador confessa atos mesquinhos, covardia e um grande sentimento de culpa. Os alicerces que sustentavam sua reputação de pai de família exemplar e médico bem-sucedido parece ruir paulatinamente.Os acontecimentos narrados se concentram no caso secreto com Italia, jovem da periferia por quem Timoteo se apaixonara vinte anos antes, quando já era casado com Elsa, uma jornalista de sucesso. Durante anos, Timoteo e Italia se encontraram na casa dela, um barraco no subúrbio da cidade.A narrativa chega a um ponto crítico no dia do nascimento de Angela, a caminho do hospital. Conduzido pelo acaso, Timoteo vai promover uma reviravolta em sua vida. Um ato inesperado o leva a rever o casamento e sua confortável posição social."


  • Filmes e séries

Inacreditável (minissérie) 

Uma jovem é acusada de falsa denúncia de estupro. Anos depois, duas investigadoras encaram casos assustadoramente parecidos. Série inspirada em fatos reais.


Audrie & Daisy (documentário) 

Neste documentário comovente, duas adolescentes descobrem que os abusos sexuais que sofreram foram filmados e são humilhadas na internet.


Sex Education (série)

Na segunda temporada dessa série, a personagem Aimee entra no ônibus para ir para a escola e é assediada por um dos passageiros, que se masturba e ejacula em sua perna. Ela pede ajuda e é ignorada, descendo, em seguida, do ônibus em desespero. As consequências na vida da garota são diversas, compreendem desde ir para todos os lugares somente a pé até terminar com seu namorado por não se sentir mais confortável em ser tocada. Felizmente, ela encontra apoio e cura em um grupo de amigas que, simbolizando a sororidade, acompanham-na no ônibus até a escola.


Contextualização filosófica 

Judith Butler - Quadros De Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto?

Uma ampla interrogação transgressora e peculiar sobre como o poder enquadra nosso olhar sobre os corpos, seus significados e seus valores. A filósofa norte-americana revela o discurso que modela e que oprime minorias — mulheres, muçulmanos, gays, imigrantes, refugiados e prisioneiros de guerra. Se ser portador de uma vida passível de luto, se ser reconhecido como uma pessoa, um cidadão, não é para todos, é necessário, então, compreender como esse enquadramento se constrói, para que uma política de afirmação da vida seja possível.


  • Argumentos que corroboram a cultura do estupro (e seus contra-argumentos) 

  1. “Lugar de mulher é em casa” – essa ideia é defendida com base na ideia de que a mulher, realizando somente as atividades domésticas e servindo ao marido e aos filhos está mais segura de sofrer violências sexuais. Contudo, segundo a pesquisa “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 70% dos casos de estupro, o agressor é parente, namorado, amigo ou conhecido da vítima. Assim, infelizmente, o principal risco encontra-se, muitas vezes, dentro da própria casa.

  2. “A culpa é da mulher por usar roupas curtas e chamativas” – essa é uma frase muito comum usada para culpar a vítima e não o agressor. No entanto, em 2019, em Ponta Grossa, foi realizada uma exposição com o intuito de mostrar o que as vítimas de violência sexual estavam usando quando foram violadas. Diversas peças de roupas — como camisetas largas, calças jeans, pijamas, vestimentas infantis e fraldas—, em conjunto com trechos de relatos de vítimas, constroem a narrativa da mostra itinerante. Outras exposições de mesmo cunho já foram anteriormente realizadas em outros países, por exemplo: Estados Unidos e Bélgica.

  3. “Essa novinha sabia o que estava fazendo. Ela estava pedindo isso” – Se não houve o consentimento da vítima e ela afirma ter sido estuprada, ela não estava pedindo por isso. Outrossim, o termo “novinha” é muito utilizado para sexualizar meninas menores de idade e, no caso de junção carnal ou ato libidinoso cometido com menores de 14 anos, a legislação brasileira já define como estupro de vulnerável, independentemente de outros fatores. 

Análise feita pelo nosso monitor José Paulo.



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